A precificação de combustíveis é tema recorrentemente discutido no Brasil nos últimos anos. Havendo uma única empresa produtora de quase toda a gasolina, diesel e demais derivados de petróleo produzidos no país, é relativamente normal que as alterações dos preços estejam nas primeiras páginas dos jornais todos os dias. O que não acontece em economias com mercados abertos. Agruras do monopólio. O tema ganhou mais destaque ainda a partir do final de 2016, depois que a Petrobras passou a adotar um alinhamento com o mercado internacional de petróleo para os preços da gasolina, diesel e GLP. Adicionado à crescente desvalorização da moeda brasileira frente ao dólar, o assunto ganha cada dia mais evidência e discussões acaloradas. Neste artigo, tratar-se-á de explicitar qual a dinâmica deste mercado e quais são os componentes da paridade de preços de importação que organizam o setor hoje no Brasil, destacando a importância de sua manutenção. Em outras palavras: como funciona a paridade de preços dos combustíveis e porque ela é importante para o processo de abertura de mercado que o país está fazendo.
Os elos que compõem o preço final ao consumidor
Tratando de forma didática, do poço ao posto, a produção de combustíveis conta com os seguintes elos: o produtor de petróleo e gás, o refinador, o distribuidor e o revendedor dos derivados. Em um mercado aberto, com preços concorrenciais (produto interno concorrendo com o produto importado), e quando a produção interna de petróleo, gás ou derivados é inferior à demanda, tem-se um elo adicional, o do importador (figura 1). O óleo cru nacional ou importado precisa chegar até uma refinaria em território nacional. No Brasil, 95% dessa produção é offshore, então, o petróleo costuma ser transportado em navios do ponto de produção até um terminal de armazenamento, antes de chegar a uma refinaria. A fração de petróleo ou derivado importada faz caminho semelhante, sendo trazida de outros países por intermédio de um navio até um porto, onde ocorrerá a descarga e internalização do insumo. Depois de processados esses óleos nas refinarias, as distribuidoras recebem os derivados e dão capilaridade e eles, entregando os produtos nos milhares de pontos de revenda espalhados pelo país. A flutuação de preços de todos os elos reflete, de modo geral, as cotações do petróleo. O petróleo é uma commodity cuja cotação internacional é referenciada ao petróleo Brent negociado na Bolsa de Londres, cotado em dólares por barril. Os petróleos brasileiros são referenciados no Brent, com valores levemente acima ou abaixo dele, dependendo da qualidade do óleo produzido em questão (vide Petróleo: qualidades físico-químicas, preços e mercados: o caso das correntes nacionais).1 Aqui entra a primeira questão importante sobre o funcionamento da precificação desse mercado: diz respeito à variação dos preços dos combustíveis locais que dependem da cotação do petróleo e da taxa de câmbio, do valor da moeda local frente ao dólar. Quando há aumento do barril de petróleo ou aumento da taxa de câmbio (desvalorização da moeda), os preços dos combustíveis sobem, assim como eles caem quando essas duas variáveis flutuam no sentido oposto.
As políticas de preços
Durante o monopólio legal das atividades de produção e refino de petróleo no Brasil (de 1953 a 1997), os preços de saída de cada um dos elos da cadeia dos combustíveis eram definidos pelo governo federal. Assim, de modo simplificado, cada agente apresentava suas planilhas de custos aos técnicos do governo, que a partir delas definia o preço ao consumidor. O preço final era basicamente composto pelos custos informados mais uma margem de lucro definida pelo regulador e assim ele era praticamente “tabelado” por algum tempo. Para mitigar os riscos de prejuízo, os custos fatalmente eram majorados pelos agentes, que mantinham certa “gordura” nas suas planilhas. Por conta disso, esse modelo induz a uma ineficiência em todos os elos. A quebra do monopólio em 1997, contudo, mudou a lógica interna de precificação dos combustíveis. A legislação brasileira avançou no sentido de que o mercado seria livre, garantindo um período de transição de 5 anos, para que os agentes pudessem se preparar para a concorrência. Assim, de fato, os agentes deste mercado passaram a ter liberdade para precificar os derivados a partir de 2002. Cada qual teria que, a partir daquele ano, lidar com seus custos e margens, buscar maior eficiência para competir e sobreviver em um ambiente concorrencial. Entretanto, a herança estrutural do monopólio no refino, mostrou que esse elo ainda era bastante suscetível à interferência do governo, expondo-o a um viés de “controle de preços”, uma vez que esses preços de combustíveis são basilares em qualquer economia, ainda mais em uma fortemente dependente de transporte rodoviário. É relevante destacar que o mercado de commodities é marcado por oscilações diárias de preços, que respondem às variações de oferta, demanda, estoques e perspectivas por parte dos analistas globais que podem, por vezes, reagir a notícias e eventos de forma exagerada, impondo certo grau especulativo ao valor da commodity. Entendendo esse pressuposto, no Brasil, essas flutuações de preços do petróleo e derivados foram atenuadas pela Petrobras de 2002 a 2016 para GLP, gasolina e diesel, de forma artificial. A estatal mantinha o preço desses derivados constante por longos períodos na saída das refinarias, criando a falsa sensação de estabilidade no mercado. Ou seja, esses preços não acompanharam as consequências da queda das torres gêmeas e a invasão do Iraque pelos Estados Unidos, o abrupto aumento de demanda da Ásia, o início da guerra civil na Síria, a queda da capacidade ociosa da Arábia Saudita, a crise financeira de 2008, a Primavera Árabe, a revolução do shale gas em 2014 e a consequente crise de 2015, entre tantos outros fatores oscilantes dos preços no mercado internacional. Esse represamento dos preços no mercado nacional fez com que estes ora estivessem acima dos praticados no mercado internacional, ora abaixo, o que pode ser observado mais visivelmente a partir de 2008 (figura 2). Esse descolamento de preços entre a realidade mundial e o mercado interno, por interferência estatal, trouxe como consequências negativas redução do caixa da Petrobras, baixos investimentos privados em refino, em infraestrutura de importação e exportação de derivados, além de reflexos negativos para o setor sucroalcooleiro de 2011 a 2014 em especial. Preços controlados pelo Estado não são atraentes para a iniciativa privada em nenhum setor. Ciente dessa questão, orientada pelo acionista-controlador, e já mirando a abertura do mercado refinador, a Petrobras tem adotado desde o início de 2017 uma política de preços que tenta acompanhar a cotação do produto importado, sinalizando que a referência para a produção nacional, onde ainda não há um mercado concorrencial estabelecido, é um marcador externo independente, e não o governo. Desde a metade daquele ano, passou-se a conviver com oscilações mais frequentes nos preços na saída das refinarias. Essa foi, no entendimento das recentes gestões da empresa, uma forma de ser transparente em relação aos preços praticados pela companhia, bem como para evitar prejuízos ou lucros artificiais como os ocorridos nos períodos de 2011 a 2014 e 2015 a 2017, respectivamente. Contudo, acostumados a longos períodos sem reajustes, o mercado e os consumidores de combustíveis não reagiram bem à nova sistemática de preços quando estes passaram a subir com maior frequência (influência do aumento do petróleo e da desvalorização do real frente ao dólar), fato que culminou com a greve dos caminhoneiros em maio de 2018 e uma ampla discussão a respeito do assunto. Interessante notar que quando a estatal praticou preços mais altos do que o produto importado entre 2015 e 2016, mas manteve eles estáveis por longos períodos, não houve maior desconforto a esse respeito. A questão, óbvio, parece ser a frequência dos reajustes em si, e não exatamente a volatilidade dos preços o que incomoda os agentes do mercado e a população. Há ainda um outro viés dessa discussão que nunca é trazido à tona: será o problema real a frequência com que o preço (confundida muitas vezes com a volatilidade) oscila ou o nível do preço perante o poder aquisitivo da sociedade?
Os preços de paridade de importação
A precificação de produtos em mercado livre é particular de cada empresa, dependendo da sua estrutura de custos, definição de margens e estratégias adotadas para concorrer no mercado. No caso dos combustíveis, a principal referência para os preços é a cotação do petróleo, pois é o insumo que compõe a maior parcela do custo de produção. No caso da produção doméstica, agregam-se ainda os custos de transporte, processamento e margem de refino para se chegar no preço final da cesta de derivados. Como o Brasil tem déficit na produção de combustíveis, em especial GLP e diesel, o balizador de preços é o produto importado que chega ao consumidor, isto é, à realidade de mercado, o combustível produzido internamente será valorado a preço de importado. A bem da verdade, atualmente, o produto importado é o único concorrente ao produto Petrobras, e é a ele que o mercado se referencia. No entanto, existem muitas críticas em relação a essa questão, uma vez que fração relevante dos combustíveis é produzida internamente e não precisaria ter em seu preço as parcelas relativas aos custos de importação que são embutidos no preço de paridade de importação (PPI). Mas se o produtor interno precificar abaixo do preço do importado, e como não há condição de suprir 100% da demanda, pela lógica da lei da oferta e da demanda, faltará produto. O produto importado é mais caro por conta dos custos logísticos envolvidos para trazê-lo de fora e internalizá-lo. Assim, são incluídos no preço interno estimativas dos custos de retirada do produto no porto de origem, do valor do frete, do seguro da carga, dos custos do porto de chegada, entre outros que compõem os custos de importação (figura 3). A percepção dos custos de importação não é homogênea, muito menos unânime, cada agente de mercado tem suas estimativas. Esses custos embutiram em abril de 2021 uma diferença estimada em relação ao produto produzido em solo nacional de R$ 0,20 a R$ 0,25 por litro de combustível, a depender do ponto de partida e chegada considerados. Há que se considerar ainda que nem todo combustível produzido no Brasil tem condições de ser “exportado” para outras regiões do país de forma econômica. Mais da metade da capacidade de refino do país está nas regiões Sul e Sudeste e o custo de se levar este combustível para as regiões Norte e Nordeste, por exemplo, pode ser maior do que trazê-lo de outro país. A infraestrutura de abastecimento existente no Brasil tem muito mais um perfil importador do que exportador, especialmente nas regiões que estão mais afastadas das zonas de abrangência das refinarias. Em última análise, em algumas localidades é efetivamente mais barato importar de outro país do que de outro estado da Federação.
Considerações finais
Como pode-se observar ao longo deste artigo, são vários os elos que constituem o mercado de combustíveis. O Brasil experimentou durante décadas preços controlados pelo governo, que impunha arbitrariedade e ineficiência aos agentes participantes. Legalmente, desde 2002 fora conquistada a liberdade para precificação dos combustíveis, mas essa liberdade de fato só vem ocorrendo desde 2017, sob intenso debate. A interferência estatal no elo de refino impôs ao Brasil um atraso em termos de crescimento da infraestrutura de abastecimento na última década, especialmente por afugentar o investimento privado. Mesmo com os esforços da Petrobras em ampliar a capacidade de refino e rotas de escoamento dos derivados, temos ainda deficiência logística e déficit de derivados estruturais. Os preços de paridade de importação são elemento-chave para que, em mercado aberto, se consiga com múltiplos agentes ampliar a estrutura existente. Se o Brasil fosse exportador líquido de derivados, ter-se-ia hoje decréscimo de preço equivalente aos Figura 3 Esquema de precificação dos combustíveis Fonte: Elaboração própria. custos logísticos embutidos no PPI (R$ 0,20 a R$ 0,25/litro de gasolina e diesel), pois, no limite hipotético, seriam adotados preços de paridade de exportação, sem os custos logísticos de importação compondo o preço de saída do refinador. Por isso que é de suma importância não só que a oferta de derivados cresça internamente, forçando a uma queda de preços à paridade de exportação, como aumente o número de agentes refinadores, de oferta de combustíveis alternativos (biocombustíveis, GNV, eletricidade – para carros elétricos e híbridos), para que haja de fato uma concorrência entre esses agentes e a precificação se dê, finalmente, pelo equilíbrio de mercado. Preço de paridade, seja ele qual for, é essencial na construção de um real mercado competitivo. A própria almejada transição energética depende disso, de condições de mercado que fomentem a livre concorrência, o aumento da eficiência e a busca por novas alternativas energéticas. Qualquer tentativa de interferência que não preserve a liberdade de preços em todos os elos da cadeia tem efeitos negativos conhecidos, coloca o país no atraso e não dialoga com os desafios que se tem pela frente. Vamos adiante.
Disponível em: https://fgvenergia.fgv.br/publicacao/ petroleo-qualidade-fisico-quimicas-precos-emercados-o-caso-das-correntes-nacionais
Fonte: Marcelo Gauto – Doutorando de Bioenergia da Unicamp, especialista em Petróleo, Gás e Energia – https://www.linkedin.com/in/quimicogauto
Fernanda Delgado Professora de Geopolítica da Energia e coordenadora de pesquisa da FGV Energia